JK em Santos e a voz da Casa do Comércio

Presidente visitou a Associação Comercial de Santos, percorreu Cubatão e encerrou o dia em banquete televisionado, discutindo café, câmbio, indústria e relações com os EUA.

Santos, 29 de janeiro de 1957, uma terça-feira, em dia de porto cheio, soube receber o presidente Juscelino Kubitschek, o JK. Atendendo a convite da Diretoria da Associação Comercial de Santos (ACS), ele desembarcou na Base Aérea de Santos e, sob aclamações, primeiramente passou em revista as tropas e seguiu para a sede da entidade, onde o aguardava uma pauta densa. A cidade, “brasileiríssima”, como definiu em seu discurso, ofereceu cenário e assunto à altura de um governo que se propusera metas ambiciosas.

fotos: JK chegando em Santos pela Base Aérea

A recepção na Base Aérea e no cais trouxe uma moldura institucional rara, com a presença do governador Jânio Quadros, altas patentes militares e dirigentes da economia paulista. O protocolo foi rápido. Após o desembarque, Juscelino cumprimentou trabalhadores e autoridades nas escadarias da Alfândega e tomou o rumo da ACS, a velha casa do comércio que preservava, desde 1870, um papel de tribuna cívica e empresarial.

Na sede da Associação, JK assinou o livro de visitantes e ouviu a saudação do presidente Alceu Martins Parreira. O dirigente relembrou a tradição da entidade em “bater as sandálias na soleira”, deixando de fora interesses privatistas, e qualificou o ofício de liderar a ACS como “munus público”. Era o tom do encontro: respeito institucional e franqueza sobre a conjuntura.

A chegada e a homenagem na ACS

O orador da Casa não mediu termos. Admitiu que não havia apoiado a candidatura vitoriosa, mas reconheceu o tamanho do desafio econômico do novo governo, já no primeiro ano, diante da “pressão inflacionária” e da sobrecarga orçamentária. E fez justiça ao desenho da política econômica: “Iniciou o ministro José Maria Alkmin uma política de combate à inflação…”, registrou, valorizando o ajuste no crédito e o cuidado cambial.

Coube ao presidente JK responder na mesma moeda. Do púlpito da ACS, ele agradeceu a sinceridade e devolveu com urbanidade democrática: “A circunstância de ter participado da luta política em campos opostos não excluía a possibilidade de entendimento”. De pronto, enalteceu o espírito paulistano de “bandeiras” que a Baixada ampliava com indústria e porto, num elogio direto à vocação de Santos.

Ao qualificar a cidade como “o grande porto ativo do grande Estado ativíssimo”, Juscelino recuperou a imagem de uma praça que, além do trabalho, preservava “a paz meditativa”: lugar para pensar o que viria. E ali mesmo marcou posição sobre o eixo central da visita — o café — e sobre a necessidade de coordenar finanças, câmbio e produção.

fotos: JK na ACS

Indústria, energia e território

Depois dos atos na ACS, a comitiva seguiu a Cubatão. Na Refinaria Presidente Bernardes e na Fábrica de Fertilizantes, superintendidas pela Petrobras, o presidente percorreu dependências, pediu informes sobre produção e processos, e voltou a insistir no papel da energia e da química de base para o plano de desenvolvimento. Era a concretude industrial ancorando o discurso macroeconômico.

Cubatão sintetizava o itinerário do governo: combustível para os motores da indústria automobilística nascente e insumos para agricultura mais produtiva. A visita técnica, com diretoria e engenheiros, mostrou números, cronogramas e gargalos. JK ouviu, perguntou e relacionou cada detalhe à estratégia de acelerar o “surto industrial” do país.

Entre um ponto e outro, manteve-se a agenda política com as autoridades paulistas, em especial num tema de interesse local: o financiamento à produção e a fluidez do comércio exterior. O presidente, alinhado ao ministro da Fazenda, defendeu instrumentos para estabilizar a moeda sem sufocar a atividade exportadora.

fotos: Evento para o presidente Jk no Parque Balneário Hotel

Banquete pioneiro e câmeras em movimento

O almoço no Parque Balneário Hotel reuniu quase trezentos convidados e, num gesto de modernidade, contou com cobertura ao vivo da Sub-Estação do Canal 5, TV Santos, da Organizações Victor Costa. A emissora local, pioneira, levou à plateia das quatro cidades da região os discursos, as saudações, a mesa de autoridades. O banquete ganhou ares de aula pública sobre economia política.

Foram apenas duas falas — a da ACS e a do presidente —, como se desejava: menos cerimônia, mais conteúdo. Do lado empresarial, registrou-se o alívio com a redução dos ágios para importação e a “progressiva restauração do valor do cruzeiro” no mercado livre, sem perder de vista o custo do ajuste para exportadores. Do lado do governo, reforçou-se a meta: conter inflação, destravar crédito e manter a confiança no Brasil industrial.

A mídia registrou a cena: o encontro inédito entre a classe cafeeira paulista e o chefe da Nação em torno de uma pauta comum. A televisão, “sensacional” na cobertura, surpreendeu o próprio presidente e testemunhou a costura de consensos em torno de café, indústria, câmbio e infraestrutura energética.

imagem: manchete no Jornal A Tribuna sobre a passagem de JK pela cidade de Santos

Café, qualidade e regulamento de embarque

No tema-síntese da visita, o presidente falou sem rodeios: “Não faltará o meu governo ao café e aos cafeicultores”. Afirmou que a defesa do principal gerador de divisas exigia medidas “comprovadamente úteis”, do Regulamento de Embarque ao combate à fraude, passando por financiamento adequado — sem valorizações artificiais que gerassem “depreciações ruinosas”.

A ACS, por sua vez, cobrou tratamento equânime aos exportadores diante de mudanças no câmbio e no crédito. O diagnóstico foi comum: o bom desempenho da balança comercial precisava ser convertido em estabilidade monetária e previsibilidade para quem embarcava pelo cais santista. A praça, colmeia de trabalho, pediu clareza de regras.

JK aproveitou para convocar os próprios produtores: “Precisamos oferecer aos nossos clientes cafés finos”, insistiu, ligando competitividade à qualidade e produtividade. Não bastava volume; era preciso marca, controle e eficiência de lavoura a armazém — elo a elo, até o porão do navio.

Relações com os EUA e capital produtivo

Ainda no púlpito da ACS, o presidente tratou da política externa com franqueza. Saudou o acordo em Fernando de Noronha como sinal de alinhamento na defesa da paz, e defendeu uma cooperação mais ampla com os Estados Unidos. Rejeitou a caricatura do “capital colonizador” e preferiu falar em “capitais geradores” voltados a manufaturas no Brasil.

“Precisam os industriais e homens de negócios… se convencerem de que não mais as relações com o Brasil devem ser colocadas no plano do ‘Export-Import’”, disse, propondo a migração para investimentos diretos. O apelo foi pragmático: respeitar a personalidade de cada país e fazer do lucro um sinal de projetos duradouros, que “enrijeçam o ativo” nacional.

A resposta empresarial encontrou eco no argumento da confiança. “A entidade que inaugurou o seu Livro de Ouro com a assinatura de um imperador soube, mais uma vez, funcionar como fórum de Estado — sem ceder ao proselitismo, mas sem renunciar ao seu papel político de voz do comércio”, disse JK.

foto: JK assina o Livro de Ouro da Associação Comercial de Santos

O fecho do dia e o rumo ao mar

Encerrado o banquete, a comitiva deslocou-se para cumprir uma agenda que misturou infraestrutura urbana e simbolismo de prosperidade. Houve cumprimentos, fotografias, improvisos. O presidente voltou ao porto, embarcou no cruzador “Almirante Barroso” e tomou o caminho do Rio, sob o ruído habitual dos guindastes e o compasso das marés.

Entre a manhã e o entardecer, o roteiro santista coube inteiro no tabuleiro da política econômica: inflação e crédito, câmbio e exportações, energia e indústria, café e qualidade. Santos forneceu a arena — porto, refinaria, fábrica, televisão, salão — para que governo e classes produtoras se enfrentassem como parceiros críticos.

No balanço, restou a imagem de uma cidade que pensou o país a partir do cais. E de uma associação que, fiel à sua história, abriu as portas para a divergência franca e o acordo possível. “Tomar posição na primeira linha de defesa da ordem econômica e social” — como dissera a ACS — soou menos como consigna e mais como dever de casa. Foi com esse espírito que JK, depois de um dia inteiro de trabalho, deixou Santos com a pauta afinada e ainda registrou no livro de visitantes sua assinatura ilustre.

 

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